sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Música e Psicanálise



por Alexandre Holtmann
Nossa intenção é, em primeiro lugar, partilhar esse filme de estilo biográfico em que João Moreira Salles nos apresenta Nelson Freire, esse maravilhoso pianista brasileiro que, de menino prodígio a pianista maduro convidado às mais reservadas salas internacionais de concerto, fez da música a sua linguagem. 
Sentado à frente do piano, olhos sempre inquietos e de uma profundidade comovente, Nelson Freire é um homem de poucas palavras. Sujeito tímido e reservado, contido em suas demonstrações de afeto, embora visivelmente à flor da pele, constantemente piscando vivamente a evitar as lágrimas, transbordando amor, paixão e encantamento. Tem a rara capacidade de dar vida ao instrumento - que inclusive trata como um ser com vontade própria - às partituras e às emoções e histórias dos compositores cujas obras ele interpreta. E tocando suas obras, toca as mentes e os corações dos que o escutam, cada um impulsionado por seus próprios conteúdos, mas todos igualmente movidos em suas paixões pela força da música.
Historicamente falando, há registros de desenhos que datam de períodos muito anteriores à capacidade do homem de se expressar em palavras, onde aparecem instrumentos musicais, sejam rítmicos ou de percussão, ou mesmo instrumentos harmônicos, habitualmente de sopro. São também conhecidas as referências históricas que trazem o canto em suas formas mais rudimentares como anteriores à fala. E a música tem caminhado de mãos dadas com a humanidade, servindo para erguer os soldados à guerra, celebrar triunfos e abrandar sofrimentos, para enterrar nossos mortos e homenagear nossos célebres. É lugar comum dizer que a música é visceral, e de fato o é. O canto é impulsionado pelo diafragma e tem como “caixa de ressonância” o corpo do cantor: suas vísceras, sua face, sua cabeça. Na verdade, todo o corpo adquire uma função que, praticada e aprimorada transforma o próprio corpo humano em instrumento musical. Mas não é só o canto que modifica o interior do músico. O instrumentista tem seus sensos apurados e cria uma teia de conexões que o fazem perceber o instrumento como uma extensão dele mesmo, através da qual suas emoções fluem de forma a provocar nele mesmo, e naqueles que o escutam, uma enorme onda de reações afetivas e emocionais, da raiva à paixão, do horror ao sublime, do pavor ao alívio mais terno. 
E cada indivíduo será tocado em sua singularidade, no que há de mais íntimo e subjetivo, construindo suas pontes carregadas de afeto, que talvez ascendam à palavra, mas que certamente produzirão seus efeitos.
E a psicanálise, arte de escutar o sujeito e dar lugar às suas questões e estruturação subjetivas, como a música, visa a modificar o indivíduo, não pela via da compreensão ou da apropriação consciente de seus determinantes psíquicos, mas à semelhança da música, pela aproximação de seus afetos, de suas marcas visitadas e resignificadas ao longo de uma biografia única, singular e pessoal. 
E não poderia terminar essa pequena reflexão sobre o filme sem citar uma frase muito significativa do próprio Nelson Freire que, em um mundo de “pop stars”, diz que “a música não é uma competição, e que quando alguém, músico ou crítico, elege o intérprete como estrela suprema do espetáculo, algo errado está acontecendo”.  E certamente algo de muito precioso foi perdido nesse contexto: a riqueza da própria linguagem musical!  

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