terça-feira, 27 de abril de 2010

"O que pode o corpo?" - Aline Fiamenghi - Rede Clínica de Psicanálise

Continuamos a nos indagar sobre esta e outras demandas referentes ao corpo de maneira incessante. Será o corpo inapreensível? Que questões podemos formular a seu respeito? O que o corpo deseja? O que ele fala? O que nosso corpo diz sobre nós?


O espelho é o lugar em que descobrimos que temos uma imagem. Essa imagem é nossa e é corporal, ao mesmo tempo, pode ser separada de nós. Na medida que vemos essa imagem em outro lugar, ela não mais nos pertence. Há um intervalo entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela. Porém, muitas vezes prolongamos indefinidamente o intervalo e interiorizamos essa imagem como uma espécie de fantasma, onde não nos reconhecemos.


Essa descontinuidade entre o que vemos e o que somos, ou que gostaríamos de ser, coloca o corpo como lugar do mal estar, da insatisfação. Separado do sujeito, ele torna-se o vilão.


Ao trabalhá-lo, tratá-lo, conservá-lo, substituí-lo pensamos escapar do mal estar e da finitute. Afinal, esse corpo que cai, machuca, adoece, não funciona como gostaríamos, ele falha. Transformando o corpo em mercadoria que pode ser comprada, melhorada, corrigida, impomos um “fora” do corpo, uma exterioridade do sujeito que dita o simulacro do próprio corpo.


Mas, afinal, o que é o corpo?


Na tentativa de nos aproximar e de apreender o que seria esta dimensão corporal, fabricamos um discurso sobre o “corpo máquina maravilhosa” embasados em uma apologia da saúde perfeita e do bem estar. Mas talvez, pudéssemos nos perguntar se toda essa fala sobre o corpo não estaria justamente a serviço de esvaziá-lo, de retirá-lo do lugar da experiência. Uma vez que o corpo não é algo dado, mas algo a ser construído, qual o corpo possível? Como podemos construir um corpo levando em conta nossa história, nossas relações e como o mundo nos afeta? Qual será a dimensão política do corpo?


Esse corpo está em relação com outros corpos, ele se posiciona frente as demandas do mundo, ele é contrariado, espremido, amassado. Estamos livres dos espartilhos, mas não das cintas, meias modeladoras, saltos altos, e muita saia justa! Não é incomum experenciarmos no corpo quando algo não dá mais, seja socialmente, no trabalho ou mesmo um conflito interno, o corpo extrapola o corpo, ele transborda e denuncia a crise.


Construir um corpo é um desafio, assim como ser mulher. Como a filósofa francesa Simone de Beauvoir nos assinalou há tempos: “não se nasce uma mulher, torna-se uma”.

Talvez essas sejam questões que andem de mãos dadas…

Como tornar-se mulher? Como é ser uma mulher? Como vivo isso no meu corpo?

Essas são perguntas que insistem e não cessam de querer ex(s)istir, mas que só podem ser respondidas individualmente, por cada uma de nós.

Nossas histórias, nossas experiências, as imagens que temos de nosso corpo estão inscritas nele, assim como algo de i-mundo, imprimindo vibrações e cavando caminhos como uma espécie de escrita viva e ambulante. Os sentidos possíveis são traçados no e pelo próprio corpo, a cada vez.


Boca, seio, perna, bunda, esse “corpo organismo”, que é uma coleção de órgãos não é o único. Tem algo para além dessa coisa corporal, uma vibratibilidade, um “corpo-sem-órgãos”, que é um campo de experiência. Assim, faz-se importante pensar que estes significantes: boca, seio, perna, bunda muitas vezes falam de algo que não está lá, que corre por fora, que não pode ser visto a olhos nus.


Aline Fiamenghi

Março de 2010.

Um comentário:

  1. Essas questões geram ressonâncias, que se refletem não só na clínica. É um convite a pensar essa bandeira de ideal de perfeição que se busca, e nos leva a frequente fonte de frustação e sofrimento, aos incansavéis exercícios físicos, intervenções cirúrgicas, ao medo de envelhecer. Super valorização do corpo em detrimento do quê e para quê?

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